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  Thiago de Melo Barbosa 
Último Trago

Ao sair da boca a fumaça é densa, mas conforme caminha pelo ar se expande e perde, pouco a pouco, a densidade; o cinza-escuro passa lentamente a cinza-claro, ela sobe, e o seu contorno fica cada vez mais difícil de ser definido.

Não chegou nem a atravessar por completo a rua, no meio, já não era mais fumaça, unira-se ao nada. E o que antes era um obstáculo à visão, se abriu como cortinas, revelando-a.

Os olhos, um pouco rasgados, eram grandes e negros. Agudos olhos felinos. Que sem duvida estavam em harmonia com as sobrancelhas grossas, o liso e volumoso cabelo preso em rabo de cavalo, ainda mais negros que os olhos; e os lábios, bem desenhados e naturalmente arroxeados. Tudo parecia contribuir para a ornamentação do rosto ovalar da jovem.

Era o último trago. Ele olhava fixamente para a garota, que vinha no sentido contrário, jogou a bagana do cigarro no chão, ela passou por ele, que esmagou a bagana e virou-se para continuar a observá-la.

O rabo de cavalo fazia um movimento pendular: cobrindo e mostrando, cobrindo e mostrando, cobrindo e mostran... a parte de traz do pescoço da garota, onde uma pequena tatuagem, indecifrável, estava abrigada.

Ela trajava roupas simples, talvez por isso alguns poderiam dizer: “uma jovenzinha relaxada”. Usava um jeans velho, uma sandália rasteira e uma camiseta branca. Nada de especial. Uma garota de estatura mediana e com um andar firme, decidido: um ar de quem já conhece o mundo.

Inseguro, um pouco trêmulo, o homem do cigarro via a jovem se afastar como a fumaça daquele último trago. Era um momento difícil, tinha que tomar logo uma decisão. Relutou um pouco, alguns longos segundos recheados de “sins” e “nãos”, mas decidiu: pôs-se a andar na direção contrária ao caminho que seguiria. Pé-ante-pé, ele a seguia como que hipnotizado por aquele rabo de cavalo.

Era fim de tarde, boca da noite, e serenava. Não estava tão escuro, mas já era o suficiente para que alguns postes acendessem suas lâmpadas amareladas, formando cones luminosos rabiscados pelas gotículas de água do sereno sereno.

Pela base de um dos cones a garota passava. À uma distância de dois postes o homem a seguia. Os passos estavam sincronizados, como se ambos ouvissem o Danúbio Azul que nesse momento, em algum lugar, deveria estar sendo executado.

As sandálias rasteiras pisavam as pequenas poças d’água na calçada, melando as beiras da calça comprida, como se nada existisse no caminho, ou como se o ato de molhar os pés e ouvir o barulho líquido dos passos fosse algo que rendesse algum prazer.

Os sapatos sociais, pretos e de bicos quadrados, iam pisando nas mesmas poças, no entanto, eram passos nervosos que pisoteavam as águas com o desprezo e rancor de alguém que tenta esconder o medo mostrando-se duro.

Parou. Pensou um pouco. E deu meia volta.

Estancou. Encostou-se no muro. E tirou a carteira de cigarros do bolso.

Como se tivesse lembrado de algo a garota dá uns quatro passos e entra numa velha livraria.

Ele colocou o cigarro na boca, mas sequer acendeu. Acelerou o passo e entrou na loja, da porta de entrada viu apenas um Jeans com bainhas molhadas e sandálias rasteiras subirem o último degrau da escada no final da livraria.

Estreita, quase claustrofóbica, com inúmeras prateleiras recheadas de livros de vários tipos e épocas (o cheiro dos papéis antigos e a proximidade das prateleiras contribuíam muito para o aspecto sufocante do lugar).

 Guia Ilustrado de Saúde, Manual de Contabilidade, Dom Quixote, O Idiota, Introdução à Geoquímica, O Novo Código Penal, Otelo, Dom Casmurro, O Atlas Universal, O Príncipe, Crime e Castigo, Medicina de A a Z, A História das Religiões, Usina, Neuromancer, Planeta T2Z, Antropologia das Rosas, Alice no País das Maravilhas, A História Social dos Povos...

O lugar estava vazio, exceto pelo velho balconista que dificilmente saia de traz do seu balcão para tirar ou pôr algum livro nas prateleiras.

Ele foi direto para a escada no fundo. Subiu cada degrau com uma calma visivelmente imposta: uma calma controlada. Não via nada além das prateleiras de livros, mas escutou passos de pés pequenos vindo da extremidade esquerda.

Tremia, tremia muito, no entanto, conseguia disfarçar ao máximo. Andava devagar. E chegando ao último corredor inclinou a cabeça com a certeza de que a encontraria.

Não foi exatamente como o planejado.

Ela também escutou passos e, sorrateiramente, decidiu ir de encontro ao perseguidor: deu a volta e parou bastante perto do homem que se inclinava para observar o corredor.

Ele sentiu que havia alguém atrás. Respirou fundo e deu meia volta. O belo rosto da jovem agigantou-se ao seu olhar.

Ela estava ali. E ele aqui.

Frente a frente. Os dois. De forma inevitável — invasão de espaço — os olhares colidiram, com um arrogante desrespeito as propriedades dos raios luminosos.

Extático e estático. Sem tentar qualquer defesa o homem foi devorado pelos grandes olhos da garota, que apenas esboçou um sutil sorriso, enquanto ele, involuntariamente, mergulhava em lava. Perdia-se nalgum lugar elíptico e negro.

 

 

Thiago de Melo Barbosa