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  Thiago de Melo Barbosa 
Cadeira-de-Forla

Peso. Antes de tudo há o peso. A densidade das madeiras de lei, algo tangente ao mogno, ou ao cedro, com toda carga de nobreza e respeito, mas, absolutamente nada, além disso. Não há nada além da madeira. Nada dos móveis bem confeccionados que adornam antigos palácios, castelos, teatros, ou qualquer outra coisa que sirva de cenário para um romance belle époque, pelo contrário, o que há é a aspereza dos cortes destinados a construção civil: ripões, pernamancas, tábuas... sem Santo Carpinteiro, mas sim, Lenhador Violento, um gladiador lutando contra maçarandubas, armado de machado, suor e força.

Bruta. Nada além de um quadrado ou de um retângulo. A estética é exatamente essa, quadrilátera, sem a mínima ponta ovalada ou o menor detalhe elíptico que seja: sua construção é pragmática. Ainda que tenha três dimensões é difícil de acreditar que ela não tenha sido idealizada por geometria plana, das mais simples figuras_ duvido muito que alguém, ao mencioná-la, faça alguma relação com um cubo ou um prisma_ é bem mais fácil acreditar que, talvez, seja só um mero acaso a enxergarmos espacial; pura abstração de nossas mentes. E caso haja abstração, indubitavelmente, deve ser do observador, pois ela é o oposto da abstração, o oposto, até mesmo, da expressão. Então, naturalista? Ou primitivista? Talvez um pouco dos dois? Não sei.  

Rústica-rústica, árida. Carrega consigo a Idade Média. Tem todo aquele ar calcinado, e calcinante, dos bancos de antigas igrejas, dos velhos porões, das salas de torturas, das senzalas. Muito se emparelha com os equipamentos de tortura, diria até que possuem o mesmo espírito, são almas gêmeas, tanto que por entre as farpas da sua madeira mal lixada é possível ouvirmos os gritos torturosos, os ossos quebrando, o esticar da pele até o rasgo, o fluir do sangue fora das veias, pelo chão, misturando-se com o insalubre-úmido, mofo. Tudo como se as fibras condensassem os fantasmas medievais, conservando o misticismo sombrio de bruxas e padres no seu âmago, guardando o olhar de todos aqueles que interagiram com gaiolas suspensas, garrote, roda de despedaçamento, mesa de esviceramento, dama de ferro, cavalo de estiramento, berço de Judas etc.

 Modernamente, nesse nosso agora ido e ficado, o agora do que é metal e ferrugem descartado; três figuras, Cama de Campanha, Cadeira de Rodas e Camisa de Força, poderiam ser tomadas como seus pares. Todos esses parecem ser os elementos base de sua constituição, como se ela fosse feita de um amálgama destes objetos e, sem duvida, há um pouco de cada um deles nela: o frio, das Camas de Campanha; o terror, das Cadeiras de Rodas; a claustrofobia, das Camisas de Força.

            Desculpem-me, esqueci de mencionar outro objeto, dos nossos tempos, que talvez seja ainda mais próximo, ou pelo menos mais indicado para uma aproximação, do que todos os já citados. Refiro-me as Cadeiras Elétricas, sim, estas são realmente primas da Cadeira que aqui tento fixar. Digo isso não tanto por ambas serem cadeiras, até porque, há pelo menos um minuto atrás, ou melhor, há algumas palavras atrás, não tinha certeza se deveria realmente chamar a coisa, o objeto descrito, de cadeira. É verdade que uma pessoa senta nela, mas isto é pouco, visto que podemos sentar numa infinidade de lugares e nem por isso chamamos todos esses lugares, que nos fazem esse favor, de cadeira, certo? Além do mais, isso do que eu falo, pouco, ou nada, tem do consolo, do descanso ou do conforto que normalmente associamos as cadeiras que nos servem. Mas, voltando as Cadeiras Elétricas, a qual atribuí semelhança com aquela, principalmente, por causa da condenação que essa carrega consigo: ninguém pode desejar sentar numa Cadeira Elétrica, mas, quando se tem de sentar, não há escolha, está fadado a isso. Exatamente o mesmo ocorre com a “prima”: é preciso um deslize da Fortuna para sentar-se nela. Contudo, as Cadeiras Elétricas têm como característica a brevidade, essa coisa momentânea da morte, o de repente de deixar de existir; enquanto que a outra castiga bem mais lentamente seus condenados, usa o relógio da dor: é como sentar numa Cadeira Elétrica e não conseguir morrer.

            Por favor, não confundir com a “Cadeira” do Saramago. Até mesmo porque a Cadeira em questão não cai. E menos ainda, desaba. Seu estado é estático, não existe espaço para movimentos, nem mesmo para os inevitáveis. Digo que ela se distância mais do desabar, que do cair, porque em toda aba há um pouco de asa, e se existe algo do qual ela deve, quase que por obrigação-funcional, distanciar-se, esse algo é o vôo: foi feita para por no chão, fixar. Ela é um prego do juízo. Devo dizer também, que o que afasta, até o máximo grau, esta Cadeira da do Saramago, é o Anobium, isto porque, por mais forte e destemido que este herói possa ser, a ponto de derrubar o Homem, aqui, na cadeira que não cai, sua força de nada vale, a vida é impossível, mesmo para um ser tão resistente quanto este magnífico inseto: a Cadeira é maciça ao máximo, seu espaço interno não permite locomoção alguma, nem mesmo a da mandíbula de um cupim.

             E se internamente a vida é impossível, externamente, ela é significativamente modificada por esse estranho objeto. Ao seu redor tudo passa como um sopro febril, as pessoas que se aproximam são rapidamente envolvidas pelos seus tentáculos invisíveis e tendem a respirar, falar, andar e enxergar de maneira inabitual, como que se estivessem andando em um solo desconhecido, quase em outro planeta. A ação da Cadeira sobre todos não é dessas coisas que podem ser medidas, assemelha-se com a gravidade, mas não pode ser quantificada, sabemos apenas que quanto mais próximo, maior o efeito, contudo, o que é esse efeito, essa atmosfera, essa coisa que absorve seu usuário e tenta absorver também os circundantes, os que estão não área de influência; isso, não tem nome.

Sem duvida, ela é um enclave encravado no dedão da rotina. É uma tentativa de bramido do surdo que vaga pela praça, ou simplesmente aquele clamor, disfarçado de sorriso, que normalmente utilizamos quando todo o resto pede gargalhadas, mas nós não as temos prontas para despejar no momento. A presença da cadeira, seja em qual ambiente for, é a força de um empurrão que nos derruba num lago cheio da água que banha as visitas hospitalares. O tempo dela, sempre, é o das horas de fim-de-briga familiar: a culpa, de quem é a culpa? As pazes foram feitas, mas a busca continua, dentro, calada.

Barulhenta. A rua na frente da casa, por onde passa o mundo pós-muro, não diz nada; e é espelho, da Cadeira que descansa na varanda. Todos os passos apenas passam. E o garoto sentado... Só sentado... Lança os pássaros do seu rugido débil e inútil. Rotineiro. Lança os pássaros de asas cortadas. O urro demente ressoa pela rua com todo o furor e ódio, com toda sua luta e revolta, com toda a sua impossibilidade ressoa.

E os passos apenas passam. Sem eco.

 

 

Thiago de Melo Barbosa