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  Thiago de Melo Barbosa 
Odette

Odette era uma trava que sempre aparecia por aqui, tranqüila: sentava, pedia um cigarro ou uma dose, dava um sorrisinho e saia. Nunca tive problemas com ela. Era sempre assim, entrava delicada já dizendo “Olá mon cheri” ou, numa visita mais rápida, “Tem fogo, querido?”. Era bastante simpática, tinha até uma voz doce, pra um travesti. Nunca ficava muito tempo, mas vinha quase todas as noites, acho que tomava fôlego por aqui antes de ir pro trabalho. Se alguém perguntava ela dizia, quase que com alguma alegria: “A rua é o meu escritório, querido”. Nunca fez confusão. Odette era nome de guerra, sabe? Nunca que imaginei que pudesse se chamar Antonio, não. Ela dizia: “Odette é chic, é francês”. Adorava a França “Lá tudo é belle! Até as putas são elegantes”, e realmente, Odette era bem elegante, prum travesti é claro; sempre com cabelo limpo e penteado, cherosa, muito cherosa, bastava atravessar a porta e nós já sentíamos seu perfumo, mas não igual ao de qualquer puta não. Não, o de Odette era diferente, tinha uma coisa que ficava, sabe? Nunca senti algo assim, ela dizia: “É francês mon amour”, era engraçada, e tinha voz doce sabe? Às vezes nem parecia que era só uma trava de beira-de-estrada. Muitas putas entram e saem daqui, mas nenhuma como Odette, as outras tem jeito vulgar até no pisar, Odette não, parecia até que era moça-direita, pisava macio, sim, pra um travesti. Sorria de leve, nunca dava aquelas gargalhadas espalhafatosas de bicha-rasgada, pedia respeito até com o olhar, que, pra um travesti, era quase igual os de mulher. Ela tinha olhos verdes, acho que não eram de verdade, não sei, não entendo nada dessas coisas de comprar pedaço de corpo, mas hoje tudo se vende, né? Até peito Odette tinha, mas não eram exagerados, bonitos até, pra coisa falsa, pra um travesti; um rapaz estranho uma vez até chamou de “Seios de pálida lua”, acho que ele tava bêbo demais pra notar que era uma trava, mas ela nem deu muita atenção, apenas sorriu, se eu num soubesse o que ela era, até diria que ficou um pôco envergonhada, mas não, não uma puta-de-estrada. Sabe, de tanto ela falar, acho que realmente tinha algo de francesa, nunca vi nenhuma dessas mulher, dizem até que fedem, mas num sei, Odette não fedia, pelo contrário, acho que posso sentir o chêro dela só de pensar. Aquela presença e aquele perfume, acho que nunca vi nenhuma mulher tão cherosa, até esquecia um pôco esse chêro de cigarro com cerveja choca que tô tão acostumado: digo até que era um momento de paz, uma paz diferente, mas bar não é lugar de paz, o é? Não sei, mas é difícil entender. Odette não parecia ser de briga, não acredito que aquelas mãos, até bastante delicadas prum travesti, pudessem bater em alguém; nem que aquela vozinha, que já tinha perdido tudo da arrogância da voz masculina, pudesse bater-boca como uma qualquer por ai. Não, Odette não era puta de briga, não com aquelas mãos, sabe? Ás vezes eu reparava nas mãos dela, não sei nem porquê, era sem querer, mas eu via como ela pegava leve no cigarro: com as pernas cruzadas, uma mão balançava o copo como se tivesse com bebida de classe, e não com vodka barata; o cotovelo, da mão que segurava da cigarro, apoiava na perna que ficava por cima, enquanto ela tragava e logo saltava, devagarinho, a fumaça: parecia até com aqueles filmes preto e branco de quando eu era moleque e entrava no cinema escondido, só de sacanagem. Nem consigo imaginar como pode ter acontecido. “João Antonio dos Santos, conhecido como Odette...”, é estranho, por que será que Odette não nasceu logo mulher, enh? E o pior é que foi por aqui por perto, acho que foi pôco depois dela sair daqui, sim, acho que me lembro, dessa vez ela passou bem rapidinha por aqui, só pediu um cigarro e saiu, nem ficou o tempo de uma dose. Foi só umas três quadras daqui, como é que pode? “...cinco tiros à queima roupa...” é demais, muita maldade, não acredito que a moça merecia isso. Acho que Odette nem tinha inimigas, mas... não sei, essa vida de beira-de-estrada é muito fodida, vai ver alguém com inveja, ou um daqueles caras que ganham dinheiro em cima dessas coitadas. Num sei mesmo, mas nesse tipo de vida todos acabam se fodendo, num tem jeito. Mas sabe, acho que Odette vai até fazer falta, pra um travesti.                                     

Thiago de Melo Barbosa